O que os nosso olhos não podem ver
- Luís Eduardo P. Basto
- Apr 23, 2019
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Era uma chefe durona, exigente com a sua equipe e também com pares e superiores. Não era dada a intimidades. Não comentava sobre a sua vida fora do trabalho nem queria saber sobre detalhes pessoais de quem a cercava. Nos corredores, comentavam sua semelhança com uma árvore sobrevivente de um incêndio na floresta. Seca, maltratada, sem beleza. Nada nela poderia florescer. Sua indiscutível resistência servia apenas como lembrança da brutalidade da natureza e de descanso ocasional de pássaros distraídos, que logo fugiam de seus galhos carbonizados. Ela nunca chegou a escutar os comentários. Mas entendia o sentimento que despertava. De certo modo, concordava com a avaliação dos corredores. Desde a adolescência, se julgava realmente desprovida de graça. Feia seria um adjetivo incompleto. Sentia-se uma jovem enrugada, cinzenta. Não, nem de longe sentia inveja daquelas que pareciam concentrar atenções e olhares. O que a torturava era perceber, em todas as outras meninas normais, pelo menos um detalhe de beleza. O rosto delicado, o cabelo longo e brilhante, os olhos sedutores, o sorriso envolvente, o bumbum empinado, as pernas bem torneadas. Por que só ela não tinha qualquer atrativo? Com o tempo, fechou-se completamente. Por não ser capaz de se amar, também não acreditava que poderia ser amada. Sentia-se na obrigação de cuidar dos pais quando chegasse a hora e queria também uma velhice tranquila para ela. Por isto, se dedicava tanto ao trabalho. Gostava da ideia de ser uma formiga se preparando para o inverno. Afinal, ninguém se preocupa se uma formiga é ou não bonita. Ao final de um dia particularmente cansativo, arrastava os pés na direção do carro no estacionamento, quando percebeu algo preso no para-brisa. Parecia uma folha de papel, dobrada. Seria uma oferta de compra para o seu carro? Abriu a folha com delicadeza. Se fosse a revelação dos três segredos de Fátima ou uma mensagem do além de seu querido avô, não teria ficado mais chocada. Tratava-se do que parecia uma tentativa de poema erótico, com versos como “a brasa dos teus seios incendeia meu desejo” e “enlouqueço de imaginar teu corpo suado sob o meu”. Rangendo os dentes de raiva, pensou que seria capaz de matar. Não se sentia ofendida. O que a perturbava era a vergonha de ser exposta. Vergonha de quem tem revelados seus segredos mais bem guardados. Controlou-se. Não queria ser motivo de piada. Chamou a segurança, ameaçou meio mundo com processos, exigiu as imagens das câmeras. Precisava descobrir e, principalmente, punir o culpado. O responsável pela segurança tentou argumentar que poderia ter ocorrido um engano de automóvel, não havia o nome de ninguém no papel.
A erupção da frustração acumulada por décadas destruiu a tentativa controle. Gritava que as palavras só poderiam ser para ela; que haviam jogado a honra dela na lama; que mulheres decentes estavam naquela empresa. Só pegou o carro para ir embora quando obteve a promessa que a segurança iria olhar todas imagens das câmeras e que não descansariam até encontrar quem colocara aquele papel no automóvel dela. No meio da tarde seguinte, ela foi chamada à sala do responsável pela segurança. Ele explicou que haviam identificado o autor – achou o termo apropriado, afinal era o autor do crime e do poema – e que o haviam chamado para que explicasse o motivo. Estava na sala ao lado e... - Ele será punido? – interrompeu. O responsável pela segurança ignorou a pergunta e continuou no seu ritmo. Após muita insistência, o autor havia confessado sua paixão por ela. Trabalhavam no mesmo andar. Mas a timidez não permitia que se aproximasse. O poema era uma tentativa de se comunicar, um presente para ela. Nunca tivera a intenção de ofender. Os colegas dele contaram que ele tinha um comportamento um tanto estranho, mas que não era perigoso. De qualquer modo, solicitara ao responsável pela segurança que pedisse desculpas por ele. Ela se levantou e caminhou em direção à porta de saída. Mas, antes de tocar a maçaneta, virou calmamente para o responsável pela segurança. - Ele disse mais alguma coisa? - Não sei se a senhora vai gostar – ponderou o responsável pela segurança. - Por favor. - Ele chamou a senhora... de... a potranca mais fogosa que já conheceu. Ele não entende como os outros homens não enxergam isto. - Quero falar com ele. Ela se dirigiu decidida à outra porta, que dava acesso à sala ao lado. O responsável pela segurança tentou argumentar algo, mas ela já abrira a porta. - Preciso conversar com ele. A sós – informou ao segurança que fazia companhia ao até então admirador secreto. Estão casados há mais de quinze anos. Ainda trabalham na mesma empresa. E, basicamente, mantêm os comportamentos que tinham quando tudo aquilo aconteceu. Ninguém sabe até hoje o que os dois conversaram naquela tarde. Existem muitas versões do diálogo, que até hoje alimentam as lendas da empresa. De certo, apenas que nenhuma das versões deve ser tão boa quanto ao diálogo que realmente aconteceu.
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