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O jornalismo vive

  • Eduardo Simbalista, DP
  • Feb 3, 2020
  • 5 min read

Jornalista vintage, da internet

Os mesmos que mataram uma vez a política, radicalizando a voz do entendimento, andam a dizer que o jornalismo está em extinção.

O jornalismo nunca andou tão vivo, tão urgente e tão necessário.

Um breve passeio pelo mundo e o que vemos nas relações entre os países? Conflitos, desentendimentos, blefes, guerras de tweets e confrontos reais, criando uma instabilidade generalizada entre potências impotentes. Com a crise da globalização, completada a pilhagem e o entesouramento das riquezas disponíveis, os países se fecham na defesa impossível de suas fronteiras, impondo cordões sanitários inúteis, barreiras tarifárias artificiais e fraco controle de transações em criptomoedas.

A indiferença, a ganância e o egoísmo podem estar empurrando a humanidade para o fim. Governos se mostram insensíveis à pobreza e às migrações, que fizeram, passo a passo, desde que o homem é homem, a história da humanidade e que se repetem, em pleno século XXI, na busca da sobrevivência e da dignidade. Aqui, pode-se deixar caída uma lágrima em memória do mártir Alan Kurdi, a já esquecida criança síria que, em busca da vida, foi encontrar a morte solitária na praia vazia do Mediterrâneo.

Olhando cada país no limite de sua fronteira, o que vemos? Igual situação de perigo emergente: conflitos internos, rivalidades tribais, confrontos entre milícias e narcotraficantes, rupturas, contestação e turbulência social, crescente insatisfação contra os poderes corruptos e ineptos, gerando revoltas de alto potencial revolucionário e pondo em desequilíbrio as já instáveis relações de poder entre as sociedades e os governantes. Não há como atender às demandas de todos os coringas, caras-pintadas, gilet-jaunes e de cada grupo identitário.

Nos países da América Latina, o descontentamento é igual e difuso: manifestações vem prá rua, indistintas, contra centavos, vinténs e os milhões desperdiçados, contra a economia e o custo de vida, contra o desemprego, contra os cortes de salários e vantagens, contra todas as reformas e nenhuma, contra a insegurança, contra a violência das milícias, das gangues de rua e do narcotráfico - um estado dentro do Estado, como outrora a tão combatida guerrilha - contra a incompetência dos governos, seus burocratas e apparatchiks, contra a postura cínica dos governantes, deixando nua a impotência das instituições.

A indignação é geral. Nalguns países da Europa, o quadro é igual e talvez pior nalguns países árabes, onde a primavera não se fez verão. Velhas questões de racismo reabrem as cicatrizes do ódio, às quais se somam questões religiosas. A geopolítica das ambições da energia, do petróleo e do gás aquece o terrorismo e ameaça pôr fogo no Oriente Médio. Aplausos para o ambientalistas que verão queimadas as reservas de petróleo do mundo e terão que se voltar contra a mineração, os pesticidas, o desmatamento e as sogras. Parece que o futuro estará na África dos colonos colonizados...

Buracos negros engolindo galáxias, aquecimento dos mares e oceanos, derretimento dos pólos. O meio-ambiente, nosso habitat, saiu das páginas verdes da ecologia para contaminar os discursos temáticos da política e da economia, transformando as eleições em plataformas ambientais. Já matamos as baleias, agora corremos o risco de destruir as abelhas que alimentam o mundo, alerta a pirralha que desafia e incomoda poderosos. A defesa eco suscita, com as intempéries, incêndios e mudanças climáticas, uma emergência interesseira em torno de novas agendas sobre progresso, desenvolvimento e pobreza. E, trazendo ao debate a questão crucial do homem, desde o pecado original: o que queremos para nosso planeta e para as novas gerações, sendo que, ao final, todos estaremos mortos? Mosquitos, vírus e bactérias vêm confirmar: o homem, tão vaidoso, não tem nenhuma imunidade. Nem contra o amor.

"Não é não!" "Corpo Livre!" "Femen!" "MeToo"! "Un violador en tu Camiño!" "O estuprador é você!" O feminismo toma voz forte, elevando o tom das vocalizações de todas as preferências e inclinações sexuais, ABCLGBTSXYZ, a exigirem lugar de fala e de reconhecimento. O preconceito, mal visto, transforma-se em indiferença e até em humilhação. O aceitável é agora inaceitável, o inadmissível, admissível, dependendo da pessoa ou do grupo, muda o código do pode-não-pode. Há que se ter cautela com o novo normal. Assim, o pecado vai para o divã do psicanalista, na luta interna entre os que querem e os que não querem pecar. De todas as taras, suspeitava o brasileiro Millôr Fernandes, não haverá nenhuma tão estranha do que a abstinência. E tão antinatural, como expõe, dia-a-dia, religiosos acusados da violência da pedofilia e da perversão.

Novas tecnologias disruptivas, blá-blá-blá bloggers, digital influencers. Na velocidade da informação, na chacrinha das mídias sociais, todos falam e ninguém se entende ou se sente entendido. Nas redes, deep news, fake news, muita mentira, muita bobagem, confundem e infundem o cyberódio, inaugurando a era da estupidez 5G, da solidão digital, dos falsos selfies, do vazio cheio de likes automáticos, reverberando aplausos de emojis e oferecendo a felicidade digitalizada, repleta de good vibes de víboras.

A mediação dos conflitos, anseios, desejos e ambições, que antes fazia a política, agora é difusa e confusa nas redes sociais, transbordando as insatisfações e as frustrações para as ruas e praças. Até a democracia está em crise. A democracia participativa que se anuncia como democracia direta expõe a crise da corrompida democracia representativa dos votos, pondo a claro seus defeitos, como exporá também os defeitos das realezas e monarquias também em crise, com seus Brexits e Megxits, e, ça va sans dire, de todos os sistemas representativos. God save the Queen de todas as escolhas de todas as liberdades que devem ser respeitadas, mas que soam como alarme histórico da disrupção. O que quer dizer: o saco está cheio.

Há em andamento um processo de deslegitimização dos poderes constituídos, quaisquer que sejam. Estão expostos os falsos Calígulas, os falsos Hitlers, os falsos Napoleões. Nus, incapazes de enfrentar os desafios globais e os desafios locais. Os velhos líderes e, talvez pior, já os que se apresentam como novos, não têm o respeito e não se fazem respeitar. O poder que se anuncia já não é o da falsidade, das promessas vazias, do falso discurso e da fingida generosidade. Todas as instituições estão em crise.

Poucas vezes foi tão distanciada a relação entre poder e sociedade. As eleições já não garantem a legitimidade dos governos: a democracia está em crise. Há um sentimento generalizado de inconformismo, intolerância, insegurança, mal estar, descrédito e desconfiança, que não poderá transformar-se na desesperança que irá rapidamente do desespero à revolta e violência social, à indignação e desobediência seletiva, uma mistura de maio de 68, com a Primavera de Praga, com a Primavera árabe, com todas as primaveras e suas promessas e ilusões e com cheiro de terceira guerra mundial.

Change now! Indignez-vous! grita o mundo em chamas na ilusão da disputa do poder pelas mídias sociais. E justamente na era mais midiática jamais vista, dizem que o jornalismo está moribundo, como estão os velhos jornais. O jornalista, o bom jornalista, preparado, não é uma raça em extinção. O jornalista se adaptará a novos meios, novas telas, novas plataformas. O jornalismo nunca esteve tão vivo e tão necessário num mundo tão complexo e enigmático. O jornalismo cidadão, a tudo atento em seus dispositivos móveis, tudo vê e tudo registra pela lente dos celulares. Já não há segredos. O papel do jornalista é ver, perceber, analisar, comparar, entender, compreender e tentar, com a melhor intenção, honestidade e argúcia, explicar, decupar, decriptar, para a melhor escolha do leitor, o consumidor do conteúdo da mensagem, do que se passa no mundo, no país e na esquina de casa. Não se matará o mensageiro. O jornalismo resiste e sobreviverá. Ao jornalista, com seu olhar curioso e postura responsável, caberá sempre fazer a mediação entre o que deve, o que vale, ou não, ser publicado.

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